sábado, 29 de dezembro de 2007

Traduzir-se

Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão de vida ou morte _
será arte?

Ferreira Gullar

sábado, 8 de dezembro de 2007

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Reparo o Vento

E pra onde será que ele vai? Se me levasse onde você mora, Certamente eu iria atrás. Em noites lindas Eu fico a pensar, Será que a lua Brilha sozinha Ou você que faz ela brilhar. Ahhh... se eu pudesse imaginar,Tudo que você pensa Ou sempre irá gostar. Ehhh... se eu pudesse entender, O que te faz sorrir Eu sempre ia fazer. É que eu vim dizer Mil poesias só pra você. É que eu vim dizer Mil poesias só pra você. E se de alguma gostar Outras mil eu posso formar. E se tocar em você Outras mil eu posso fazer. Reparo o vento E pra onde será que ele vai? Se me levasse pelo mundo inteiro, Certamente eu iria atrás. E hoje acordei tão cedo E fui ver o sol chegar. Será que ilumina o mundo inteiro Ou só existe pra te iluminar?

Geralda Mathias, Machado, MG.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Conclusões de Aninha


Cora Coralina
Estavam ali parados. Marido e mulher. Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça tímida, humilde, sofrida. Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho, e tudo que tinha dentro. Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar novo rancho e comprar suas pobrezinhas. O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula, entregou sem palavra. A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou, se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar. E não abriu a bolsa. Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar e a mulher participa sem ajudar. Da mesma forma aquela sentença: "A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar." Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada, o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso e ensinar a paciência do pescador.Você faria isso, Leitor? Antes que tudo isso se fizesse o desvalido não morreria de fome? Conclusão: Na prática, a teoria é outra.

Cora Coralina (Ana Lins do Guimarães Peixoto Brêtas), 20/08/1889 — 10/04/1985, é a grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado, juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas femininos "A Rosa". Em 1910, seu primeiro conto, "Tragédia na Roça", é publicado no "Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás", já com o pseudônimo de Cora Coralina. Em 1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas, com quem foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio, Jacintha, Ísis e Vicência. Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922. Em 1928 muda-se para São Paulo (SP). Em 1934, torna-se vendedora de livros da editora José Olimpio que, em 1965, lança seu primeiro livro, "O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais". Em 1976, é lançado "Meu Livro de Cordel", pela editora Cultura Goiana. Em 1980, Carlos Drummond de Andrade, como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora, manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho, a qual, ao ser divulgada, desperta o interesse do público leitor e a faz ficar conhecida em todo o Brasil.Sintam a admiração do poeta, manifestada em carta dirigida a Cora em 1983:"Minha querida amiga Cora Coralina: Seu "Vintém de Cobre" é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia ( ...)." Editado pela Universidade Federal de Goiás, em 1983, seu novo livro "Vintém de Cobre - Meias Confissões de Aninha", é muito bem recebido pela crítica e pelos amantes da poesia. Em 1984, torna-se a primeira mulher a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de 1983. Viveu 96 anos, teve seis filhos, quinze netos e 19 bisnetos, foi doceira e membro efetivo de diversas entidades culturais, tendo recebido o título de doutora "Honoris Causa" pela Universidade Federal de Goiás. No dia 10 de abril de 1985, falece em Goiânia. Seu corpo é velado na Igreja do Rosário, ao lado da Casa Velha da Ponte. "Estórias da Casa Velha da Ponte" é lançado pela Global Editora. Postumamente, foram lançados os livros infantis "Os Meninos Verdes", em 1986, e "A Moeda de Ouro que um Pato Comeu", em 1997, e "O Tesouro da Casa Velha da Ponte", em 1989.
Texto extraído do livro "Vintém de cobre - Meias confissões de Aninha", Global Editora — São Paulo, 2001, pág. 174.

Orgia


Dinah Silveira de Queiroz
As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite: — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"? — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!".As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada?— "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”.Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo:— "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?"O marido resolveu experimentar a mulher:— "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !"Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais.O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.
Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha", "O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção "Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério da Educação e na Rádio Nacional.

O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 85.

Quero minha mãe


Abel e eu estamos precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite, estamos a pique de um estúpido enguiço. Sou uma pessoa grata? Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra. Entendo amor ao inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular. Se aviso: passo na sua casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo que me castigue com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia em que me atingiu: “trem ordinário” Com certeza não suportava a idéia, o fardo de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai, daquele caldo escuro na bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela milésima vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO. Mãe, que dura e curta vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me proibir ficar no barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia que eu saberia o motivo. Duas mulheres, nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque com a Dorita? Vai chamar tia Ceição pra conversar com a senhora? Nem na festa da escola, nem na parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para ir de “mantor” porque era de dia com sol quente, gastei cinqüenta anos pra entender. Teve uma lavadeira, a Tina do Moisés, que ela adorava e tratava como rainha. Sua roupa acostumou comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar. Foi um tempo bom de escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e quer, mesmo tendo lavadeira e empregada. Tenho sonhado com a mãe tomando conta de mim, me protegendo os namoros, me dando carinho, deixando, de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando: está sentindo alguma dor, Olímpia? É normal na sua idade. Com certeza aprendeu, nas prédicas às Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar suas filhas púberes. Te explico, Olímpia, porque pode te acontecer na escola, não precisa levar susto, não é sangue de doença. Achei minha mãe bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e da Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as incômodas e trabalhosas toalhinhas. mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?

Texto extraído do livro “Quero minha mãe”, Editora Record – Rio de Janeiro, 2005, pág. 41.Leia o texto. Compre o livro.

Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)